A história é
velha, dos tempos em que eu dava aulas numa escola e em que não tinha ainda uma
câmara digital. E dos tempos em que ainda não havia parquímetros na cidade.
A escola ficava
bem ao fundo de uma rua comprida, que possuía passeios bem largos de um dos
lados. Esses passeios eram parcialmente ocupados por automóveis estacionados em
espinha, parte no passeio, parte no asfalto, dando espaço para todos em
segurança: peões e veículos.
Acontece que mesmo
no fim da rua, na curva em cujo lado de fora ficava escola, tal não era possível
de fazer: se se deixasse espaço para os peões caminharem no passeio, impedia-se
a passagem do eléctrico da Carris, implicando engarrafamento, multa, reboque…
Pois havia um
carro que todos os dias ali estacionava e, para evitar a confusão, encostava o
pára-choques à parede do prédio. Bem encostadinho. Aliás, fazia-o com tanta
regularidade, tão encostado e sempre no mesmo sítio, que o estuque da parede já
tinha as marcas do encosto.
A solução, para
todos, era contornar o carro assim parado, caminhando no asfalto e, pior ainda,
de costas para o trânsito.
Uma manhã,
aproximava-me eu em passo rápido da escola que ainda queria tomar um café antes
de ir para a sala de aula, e preparei-me para fazer o de sempre: contornar o carro
assim estacionado.
Mas, nem sei bem
porquê, estaquei e fiquei a pensar: “Porque raio tenho eu que colocar a minha
vida em risco, se é o dono ou dona deste carro que, além de egoísta, está a
infringir a lei?”
E se pensei isto,
agi em conformidade: usando o pneu dianteiro como degrau, subi para o capôt do
carro, dei dois passos e saltei para o chão do outro lado. E atravessei a rua
onde devia, em segurança.
Claro que os
alunos que aguardavam a hora de entrarem, dentro ou fora do gradeamento,
fizeram a algazarra que se adivinha, mimoseando-me com vários títulos, um dos
quais um já muito meu conhecido “O maluco do prof JC”.
No dia seguinte,
nada de novo. Ou quase. O carro no local de sempre e eu impedido de caminhar em
segurança no passeio. A única coisa menos comum era a quantidade de malta nova
que, dentro ou fora dos portões aguardava a minha chegada.
Claro que nestas
coisas o que custa é a primeira vez: tornei a subir para cima do carro, dar
dois passos e saltar para o chão. Sem andar aos saltos em cima da chaparia, mas
também sem me preocupar qual o melhor lugar onde colocar os pés, deixando as óbvias
marcas no metal.
O terceiro dia
parecia dia de festa: tinha mais de metade da escola à minha espera e,
discretos numa janela superior, alguns professores espreitavam para ver a função.
Que se repetiu com a maior das naturalidades, com aplausos e gritaria bem audíveis
quase ao fim da rua.
Nunca houve um
quarto dia. Aquele local, obviamente destinado aos peões, nunca mais foi
ocupado por uma automóvel estacionado ou não. E eu nunca fui questionado sobre
os danos na viatura, apesar de ser bem identificável o tipo das barbas, chapéu
e de mala na mão.
Ainda hoje, quase
vinte anos depois, estou para saber quem seria o dono ou dona daquele carrito
branco.
A fotografia?
Não corresponde à
situação descrita.
Mas foi situação
recorrente há uns anos numa rua do meu bairro, que resolvi de forma semelhante,
ainda que com menos ginástica.
By me